terça-feira, 12 de fevereiro de 2013


O livro de John dos Passos sobre o Brasil em construção da metade do século 20



Augusto Nunes


Em 1948, os editores da revista Life contrataram o jornalista e escritor John dos Passos para saber como andavam as coisas no imenso grotão sul-americano que parecia ter localizado a  trilha que leva para longe das cavernas. Aos 52 anos, ele figurava no primeiríssimo time da imprensa desde a cobertura da Guerra Civil espanhola, e os livros já publicados não demorariam a incluí-lo entre os principais romancistas do século 20. Foi a primeira incursão de Passos pelo país que voltaria a visitar em 1958 e 1962.


A reedição de O Brasil em Movimento, lançado em 1964, comprova que o repórter da Life era o homem certo no lugar onde, até então, tudo parecia dar errado. As anotações feitas durante as três viagens desdobraram-se em textos que compõem mais do que uma grande reportagem. Trata-se de um documentário que prescinde de som e imagem. Quem recua no tempo em companhia de John dos Passos e ouve o que lê.


O livro destinado à estante das leituras indispensáveis se John dos Passos não fosse traído pela tradução (que, entre outros pecados, polui todos os parágrafos com pronomes possessivos sem serventia) e se não tivesse sucumbido à tentação de explicar o inexplicável. O Brasil não é para amadores, ensinou Tom Jobim. Nem para profissionais, sugerem as incontáveis tentativas de enxergar alguma lógica no cortejo de maluquices inaugurado pelas chegada das primeiras caravelas. Leitores e autor sairiam ganhando se fossem guardados para um livro de ficção os parágrafos que resumem as origens do país ou recordam acontecimentos históricos.


É comovente o esforço empreendido por um americano de Chicago para decifrar enigmas que o impedem de desfrutar sem interrogações do caso de amor à primeira vista. Rendido à hospitalidade loquaz dos nativos, aos exotismos e aos deslumbramentos do país em construção, o forasteiro habituado a ver as coisas como as coisas são  faz o que pode para evocar sem um ponto de exclamação a cada linha a saga sem similares.


Como reconhece o mais patriota dos historiadores, o Brasil nasceu por engano, virou Terra de Santa Cruz depois que se constatou que era muito litoral para uma ilha só, passou 200 anos na praia antes de animar-se a escalar o paredão que separava o mar do outro lado da mata, teve como primeira e única rainha Maria, a Louca, acolheu o filho da doida de hospício que roubou a matriz na vinda e a colônia na volta e instalou no trono um menino de cinco anos que, sem pai nem mãe, seria promovido a avô da nação. Não é pouco. E não é tudo.


John dos Passos não é um entendido em Brasil. É provável que não haja nenhum. Em contrapartida, entende de gente como poucos. O jornalista em ação na Espanha não contou nada de novo sobre a gestação da guerra civil, mas precisou de poucas linhas para eternizar personagens do conflito. Foi assim no Brasil. Em todos os encontros com as figuras da terra, bastavam a Passos alguns minutos de conversa para enxergar no interlocutor um traço louvável ou um defeito de fabricação. E uma ligeira mirada nas coisas da terra ─ a vermelhidão do solo do noroeste do Paraná, os matizes de verde da baía de Guanabara ─ era suficiente para o olhar que fazia as vezes de câmera.


Viajante compulsivo, Passos viu de perto a Amazônia no Dia da Criação, o início da extração de minério de ferro no Vale do Rio Doce, o Brasil Central saindo da infância, o Nordeste dos coronéis que governavam as jurnas, o Paraná invadido por colonizadores paulistas. Aprendeu a dormir em hotéis repulsivos, a beber cafezinho o dia inteiro e a gostar de arroz com feijão. Descobriu que vastidões territoriais sobreviviam sem latrinas, hospitais e médicos ao cerco das doenças desaparecidas havia décadas do circuito frequentado por americanos cosmopolitas. E, sobretudo, conversou. Conversou com gente da rua e com gente destinada a virar nome de rua. Nada lhe pareceu tão fantástico quanto a parto de Brasília. Nenhum agrupamento humano pareceu-lhe mais interessante que a tribo formada pelos inventores da nova capital.


“Só depois de conversar com Oscar Niemeyer por algum tempo comecei a perceber aquele homem pequeno, tímido, com olhos desconfiados, tinha uma firmeza robusta de pedreiro”, lembra. “Parecia que as palavras saíam direto do coração. Ele era desprovido de ambiguidades”. O registro elogioso contrasta com a má impressão causada por conhecidos produtos da grife Niemeyer. Num jantar, endossou em silêncio o parecer da anfitriã: “Ele não é arquiteto de jeito nenhum. É um escultor que trabalha com materiais de construção”.


Se o Brasil não canonizasse seus mortos famosos antes que o velório comece, o obituário de Niemeyer teria incluído o trecho que descreve o Palácio da Alvorada. “É um prédio singularmente belo feito de vidro e concreto branco. Flutua com tanta leveza quanto um bando de cisnes no lago de águas claras. As divisões internas também são de vidro. Perguntei-me  onde, com aquelas paredes de vidro, o pobre presidente poderia encontrar um lugar para trocar de roupa ou escrever uma carta”.


“Dai-me um repórter que seja ao menos parecido com este”, deveria implorar todo chefe de redação ao estacionar no ponto final. A sorte é que poucos leitores lembram que  uma reportagem pode ser assim.


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